PONTO DE VISTA
"Precisamos nos dedicar ainda mais ao aspecto da sustentabilidade durante todo o ciclo de vida de uma estrutura"
A entidade técnico-científica referência de concreto no mundo, a fib – Federação Internacional do Concreto, passou a ser presidida pelo engenheiro Harald S. Müller, professor doutor e diretor do Instituto de Estruturas de Concreto e Materiais de Construção do Instituto de Tecnologia Karlsruhe, na Alemanha. Com um mandato que vai até o final de 2016, o novo presidente tem o desafio de liderar de forma, ainda mais, eficiente os trabalhos realizados por importantes engenheiros, cientistas e profissionais do setor para a evolução tecnológica, econômico, social, de normalização e segurança desse insumo que é o mais usado na área da construção.
Em entrevista à Industrializar em Concreto, Müller destaca as diretrizes para os próximos anos da entidade, avalia o cenário atual da engenharia de concreto e enfatiza o papel de destaque da delegação brasileria na fib, que vem contribuindo para o desenvolvimento da área do concreto e, em especial, da pré-fabricação no mundo, por meio da participação ativa de profissionais do setor nas Comissões, nos Grupos de Trabalho e em outras atividades. Na sequência, confira os principais pontos abordados por ele:
Quais são as prioridades de sua administração na fib?
Minhas prioridades na administração ficam claras, quando avaliamos a história recente, na qual a fib fez grandes contribuições para o avanço do conhecimento e do desenvolvimento técnico no campo do concreto estrutural. A maior realização foi a publicação do Model Code for Concrete Structures 2010, em setembro de 2013, que exemplificou a iniciativa da fib em compilar o conhecimento mais recente e atualizado na forma de um código para servir como modelo para as novas gerações de normas. A base principal desse feito se deve à dedicação de excelentes engenheiros, cientistas e profissionais liberais do mundo inteiro. Esse trabalho é realizado pelas Comissões e Grupos de Trabalho (Commissions and Task Groups) da fib, que receberam uma nova formatação de suas estruturas no início deste ano. Um de meus objetivos mais importantes é conseguir fazer com que essa nova organização ajude a administrar a fib de forma ainda mais eficiente, para realizar sua missão da maneira mais perfeita possível.
Quais são as diretrizes da fib para os próximos anos?
Essa orientação basicamente resulta dos objetivos da fib, ou seja, promover o uso e o desenvolvimento do concreto estrutural para o benefício da humanidade, principalmente pelo estímulo de pesquisas, pela disseminação do conhecimento e pela produção de linhas mestras e recomendações de projetos. Vou mencionar dois aspectos muito distintos. Em primeiro lugar, precisamos desenvolver um sistema tal que a atualização de nosso Model Code possa ser realizada dentro de um intervalo curto, muito mais curto que nas décadas passadas. E, em segundo lugar, precisamos nos dedicar ainda mais, em nosso trabalho, ao aspecto importante da sustentabilidade durante todo o ciclo de vida de uma estrutura, começando pela produção do concreto em relação ao projeto, à execução, ao uso, à reabilitação até a desmontagem ou demolição e reuso.
Quais atividades serão promovidas durante a sua administração?
Teremos até o fim de 2016, quando ocorre o término da minha administração, dois Simpósios fib, o primeiro em maio deste ano em Copenhagen, na Dinamarca, e o segundo em novembro de 2016 na Cidade do Cabo, na África do Sul. Além disso, teremos o 11º fib PhD Symposium no final de agosto de 2016 em Tóquio, no Japão. Estamos, também, em processo para a organização de workshops conjuntos sobre vários assuntos com o ACI – American Concrete Institute e a RILEM – The International Union of Laboratories and Experts in Construction Materials, Systems and Structures. Planejamos, ainda, realizar novos cursos, como o Model Code Course, que aconteceu em São Paulo em novembro do ano passado.
A fib é uma entidade mundial e promove atividades em escala global. Essa operação cobre todos os continentes? Qual é a importância para os países que participam ativamente na fib?
Sim, a fib é proeminentemente ativa em todo o mundo. E isso vai aumentar ainda mais, na medida em que um número cada vez maior de países vem expressando seu interesse em se tornar membro da entidade. A fib é uma organização internacional, onde as nações são parceiras no mesmo nível, tendo os mesmos direitos e deveres. Atualmente, ela envolve mais de 40 países membros de todos os continentes. Embora ela também seja aberta a pessoas físicas, empresas e outras entidades, ela é muito mais eficiente na formação de grupos nacionais. As decisões mais importantes são tomadas após discussões por votação no Conselho Técnico e na Assembleia Geral, onde os países, ou seja, as delegações nacionais dos países membros, são representados. Por outro lado, um grupo nacional pode aproveitar ao máximo de todas as decisões, de todo o conhecimento obtido e da rede internacional da fib a qualquer momento. Mais detalhes sobre os benefícios podem ser encontrados na homepage, www.fib-international.org.
Qual é sua opinião sobre a participação e a contribuição do grupo brasileiro, para a fib?
O papel do Brasil dentro da fib é muito proeminente, já há algumas décadas, pela importante atuação ao longo do tempo de engenheiros reconhecidos internacionalmente como os professores Lobo Carneiro, Augusto Carlos de Vasconcelos e Paulo Helene. Fernando Stucchi não só é um brilhante engenheiro e intelectual, mas é também uma personalidade de projeção à frente da delegação brasileira, que é muito visível dentro de toda a entidade. Ano passado, ele foi homenageado com o fib Honorary Life Member em reconhecimento à significativa contribuição pessoal ao trabalho da entidade. Junto com a delegação brasileira e as entidades que a representam ele também forneceu uma grande contribuição para o desenvolvimento do Model Code 2010. Além disso, Stucchi é presidente do júri do fib Achievement Award for Young Engineers. A participação do professor Marcelo Ferreira, em especial na C6 de pré-fabricados, vem sendo relevante desde que o Brasil passou a integrar o grupo. As representantes Lidia Shehata e Íria Doniak são reconhecidas na comunidade. Convém lembrar que a Lidia foi a principal organizadora do Model Code Course no Rio de Janeiro em 1991, que foi um evento de grande sucesso. E, em 2012, foi promovido o I Seminário Latino Americano de Projeto e Aplicações de Estruturas de Concreto Pré-fabricado, no Rio de Janeiro, sob coordenação técnica de Íria Doniak e Marco Menegotto, então coordenador da Comissão 6 de pré-fabricados, que contou com a participação de profissionais brasileiros e de outros países da América Latina. A importância do Brasil torna-se aparente a partir do fato de que um dos dois altos cargos de membros no Presidium da fib foi concedido a um membro da Delegação Brasileira, a engenheira Íria, com endosso das entidades que integram a delegação brasileira (Abece e Abcic). Assim, as experiências e ideias brasileiras podem ser trazidas diretamente à alta administração da fib.
Como você analisa o estágio atual da tecnologia da Engenharia do Concreto?
Entre os materiais de construção, o concreto é, de longe, o mais usado no mundo, e é o material que obteve desenvolvimentos importantes nos últimos 20 anos. Como exemplos, eu gostaria de mencionar o concreto auto adensável e o concreto de alta resistência, entre outros. Por termos excelentes materiais de concreto, sofremos no mundo todo, até certo ponto, com o fato de que a prática da construção é muito conservadora, isto é, o percentual de uso desses novos concretos de alto desempenho na prática ainda é muito baixo, embora já tenhamos desenvolvido recomendações para projeto. Essa é uma desvantagem também na questão da sustentabilidade. Devemos empenhar nossos esforços para mudar essa situação. Os processos de construção são muito eficientes hoje. No entanto, ainda há muito espaço para evoluir. No que se refere ao projeto estrutural, estamos atualmente em uma situação muito promissora, porque temos disponíveis ferramentas numéricas robustas e, assim, a análise já não é mais um grande problema. A educação de engenheiros civis no mundo todo está em um nível muito alto e bem comparável, graças aos meios de comunicação pela internet. Como você pode ver, minha análise do estágio atual da tecnologia da engenharia do concreto é muito positiva. Não obstante, ainda há necessidade e espaço para melhorar.
Quais são hoje os principais desafios da Engenharia do Concreto?
Entre os diferentes desafios relativos aos aspectos sociais, econômicos ou técnicos há um que é o mais importante, que cobre todas as áreas: a sustentabilidade. O grau de sustentabilidade mais alto no concreto e das estruturas de concreto é alcançada por um melhor desempenho do material, pela vida útil mais longa e pelo impacto ambiental mais baixo. O ultimo aspecto significa, por exemplo, produzir concreto com um teor muito mais baixo de cimento Portland, mantendo constantes as propriedades do concreto. A importância dessa abordagem torna-se clara a partir dos seguintes fatos: hoje, entre 5 a 7% da emissão de CO2 antropogênico resulta da produção de cimento Portland. Se o uso de concreto – como um material indispensável para o desenvolvimento econômico – aumentasse por um fator de cinco durante os próximos 30 anos, a consequência seria o aparecimento de severos problemas ambientais. No entanto, abordagens promissoras já estão em desenvolvimento para evitar consideravelmente esse problema.
A industrialização da construção é uma tendência mundial? Qual é o papel das estruturas do concreto pré-fabricadas nesse contexto?
Sim, essa é uma tendência mundial por motivos econômicos. Os elementos pré-fabricados facilitam o processo da industrialização na construção. No que se refere ao desenvolvimento positivo da indústria do concreto pré-fabricado, há outro motivo que também é importante. Os concretos de alto desempenho são muito suscetíveis a pequenas variações na composição do concreto ou a temperatura do ambiente no estado do concreto fresco. Esses efeitos dificilmente podem ser controlados no caso do concreto produzido no local. Por outro lado, a indústria do concreto pré-fabricado pode produzir facilmente elementos de concreto de alta qualidade. Os efeitos ambientais durante o endurecimento podem ser perfeitamente controlados. Como resultado, o aumento no uso de concretos de alto desempenho, que é indispensável em termos de sustentabilidade, deverá levar a um uso mais amplo de elementos pré-fabricados. Por enquanto, o concreto de desempenho ultraelevado pode ser aplicado na prática apenas como elementos pré-fabricados. Além disso, existem outros motivos para um uso mais difundido do sistema, relacionados, por exemplo, à economia de energia e às estratégias de demolição.
Recentemente, a fib e a Abece, com apoio da Abcic, promoveram o fib Model Code Course no Brasil. Historicamente, qual é a contribuição desse documento para os países membros da entidade?
O fib Model Code 2010 oferece o conhecimento mais atualizado sobre projeto de estruturas de concreto no formato de código. Importantes especialistas de mais de 40 países desenvolveram esse documento. Não há nada comparável na construção em todo o mundo. Ele serve como base para novas gerações de padrões nacionais. Isso é verdade não apenas para os países membros da fib, mas também para outros países. A mesma situação era válida quando os antigos Model Codes de 1978 e 1990 foram implantados. Quero mencionar, apenas como um exemplo, que eles desempenham um papel determinante nos países que seguem as normas do CEN – Comitê Europeu de Normalização. As normas europeias (os EN, em particular EN 1992-1-1: 2004 para o projeto de estruturas de concreto) foram baseadas no Model Code de 1990. Mas também fora da Europa, isto é, na Ásia, Estados Unidos, Austrália e até mesmo na África, ele é considerado como um documento de orientação. E, finalmente, não podemos esquecer que os Model Codes, juntamente com os documentos que lhe dão suporte, servem como uma valiosa referência para a ciência da engenharia civil.
Qual é sua análise sobre a participação brasileira durante a aprovação do Model Code?
A delegação brasileira contribuiu ativamente para o desenvolvimento do Model Code e também mostrou um alto nível de comprometimento no melhoramento e na correção das minutas do documento. O voto final sobre o Model Code foi unânime, inclusive com o voto do Brasil.
Quando você esteve aqui, qual foi sua análise sobre a engenharia brasileira do concreto?
Tive uma impressão realmente excelente durante o Model Code Course em São Paulo. Houve um debate intenso e profundo entre profissionais liberais e cientistas, sobre o projeto estrutural, abrangendo as reflexões sobre o contexto e as causas dos principais pressupostos dos modelos. Meus colegas e eu, que havíamos apresentado os diferentes temas, ficamos muito entusiasmados com isso. E além dessa ressonância muito positiva, devo afirmar claramente que sob meu ponto de vista a organização foi perfeita. Gostaria de agradecer à equipe organizadora liderada por Fernando Stucchi.
Perfil de Harald Müller
Harald Müller é professor-titular no Instituto de Tecnologia Karlsruhe, na Alemanha, diretor do Instituto de Estruturas de Concreto e Materiais para Construção e diretor do Instituto Karlsruhe de Testes de Materiais.
Expert e consultor para a Associação Alemã de Tecnologia de Concreto e Construção e o Instituto Federal Alemão de Tecnologia para Construção, é sócio-diretor no SMP Ingenieure im Bauwesen (Society of Engineers of Constructions Ltd); em Karlsruhe, Dresden, na Alemanha.
Müller é membro em várias comissões técnicas e científicas alemãs e internacionais e em entidades para normalização, como por exemplo, participa do DIN (CEN – Comitê Europeu de Normalização), da DAfStb - German Committee for Reinforced Concrete, da FGSV - German Road and Transportation Research Association, do ACI – Instituto Americano do Concreto, e da RILEM.
Além disso, é presidente da fib – Federação Internacional do Concreto (2015-2016), membro da Fundação Nacional de Ciência Alemã (DFG), membro do Conselho Consultivo do Instituto Federal Alemão de Tecnologia para Construção Civil (Dibt) e coordenador do TG 7 “Time dependent effects” no CEN TC 250 SC 2 (Eurocode 2).
Atua em áreas, como concreto e estruturas de concreto, análise e gerenciamento do ciclo de vida das estruturas de concreto; proteção, manutenção, reparação de estruturas; teste de metodologias para o concreto (material e estruturas); comportamento mecânico e modelagem do concreto; microestrutura e durabilidade de materiais para construção; normalização internacional e alemã e orientações.
Müller contabiliza aproximadamente cerca de 360 publicações em jornais e revistas alemãs e internacionais sobre os temas em que é especialista e em anais de congressos, além de publicar mais três monografias e 13 anais.